sábado, julho 06, 2019

Pentecostalismo, Revelação e Autoridade: novos desafios à hermenêutica pentecostal.


O evangelista Mateus inspirado por um anjo (Rembrandt)
          Desde o seu início, o movimento pentecostal enfrentou críticas quanto à sua natureza e "inovação" teológica/litúrgica. Além das críticas quanto a doutrina da atualidade do batismo com o Espírito Santo e a atualidade dos dons espirituais, a crítica teológica mais comum foi a da inaptidão pentecostal em afirmar e defender a autoridade, inspiração e inerrância da Palavra de Deus. Livretos como o de Josafá Vasconcelos, intitulado Nada se Acrescentará (Puritanos, 1998), repetem essa crítica em tempos recentes. Hélio Menezes, célebre batista fundamentalista, certa vez me respondeu em e-mail que o pentecostalismo era espiritualmente danoso pois "colocava a experiência acima da Bíblia". Todavia, uma rápida olhada pela história do movimento pentecostal desmitifica tal crítica exagerada, pelo menos no campo doutrinário/teológico. 
            Na Teologia Sistemática pentecostal editada pelo célebre Stanley Horton,  Gary B. McGee descreve como a confissão pentecostal das Assembleias de Deus americanas em sua Declaração de Verdades Fundamentais  mostrou sua sintonia com a Associação Nacional de evangélicos, quando publicou uma revisão no texto da Declaração, afirmando que as Escrituras eram "verbalmente inspiradas por Deus, e são a revelação  de Deus ao homem, a regra infalível  e autorizada de fé e conduta". Mais tarde, a própria Convenção reafirmou seu compromisso com a Inerrância da Bíblia, com a publicação de um informe oficial sobre o tema¹.
            Dentre os teólogos destacados dentro do movimento pentecostal que sempre defenderam com vigor a inspiração e inerrância das Escrituras  podemos citar Myer Pearlman, que em seu livro Conhecendo as Doutrinas da Bíblia defende claramente a inspiração plenária e verbal da Bíblia, afirmando que "As Escrituras são o resultado da divina inspiração espiritual, da mesma maneira em que o falar humano é  efetuado pela respiração, que possibilita a emissão das palavras"². Outros teólogos pentecostais de destaque em defesa da inerrância são William W. Menzies e Stanley Horton em seu Doutrinas Bíblicas: Os fundamentos de nossa fé, livro que procura ser uma explicação teológica autorizada acerca das Verdades Fundamentais das ADs nos EUA. Nele, Horton e Menzies são enfáticos: "A origem divina e autoridade das Escrituras asseguram-nos ser a bíblia também infalível, ou seja: incapaz de erro, ou de maneira enganosa, ludibriadora ou desapontadora a seus leitores"³.
          Diante de tais declarações, não há como  afirmar que o movimento pentecostal, representado por sua maior denominação, não esteja de acordo com relação à Bíblia como Palavra de Deus. Porém há mais coisas a tratar.

O Desafio Hermenêutico do pentecostalismo contemporâneo.

        Afirmar a veracidade das Sagradas Escrituras é algo bem definido no movimento pentecostal. No que tange à interpretação, os pentecostais de maneira geral,  em especial no Brasil, sempre seguiram o método gramático-histórico de interpretação dos textos bíblicos, mesmo com algumas distinções em certos pontos. Tal método, que remota ao tempo da Reforma, é o único que faz jus à Bíblia como Palavra de Deus inerrante, pois valoriza as declarações verbais bíblicas, pronunciadas em seu devido espaço histórico e cultural. O método gramático-histórico é também chamado de método "antioqueno" ou "literal de interpretação", assim também como método "naural", de interpretação Bílbica. No método gramático histórico, não se procura a "intenção" do autor ao escrever determinado texto, mas sim o significado expresso no próprio texto, como afirma Roy Zuck: "Quando interpretamos a Bíblia, procuramos entender o que ela diz, não o que o autor humano quis dizer"[4].
           Em anos recentes, todavia, um desafio ao método histórico-gramatical foi proposto dentro das academias evangélicas. Vários estudiosos tendem a acrescentar algo ao método tradicional, outros também procuram abordar a interpretação bíblica através de teorias linguísticas modernas, que não levam em conta a inspiração bíblica.  Outros até mesmo estão  vendo a possibilidade de utilizar novamente um método alegórico de interpretação bíblica, que procura descobrir um "sentido mais pleno" do que o expresso pelo autor humano [5].  Tal tipo de inovação hermenêutica não deixou de estender certa influência na academia pentecostal. No Estados Unidos, teólogos associados com o pentecostalismo procuram associar a experiência pentecostal com a experiências místicas de outras religiões, inclusive as de matriz africana[6].
          Nestes últimos anos, tal tipo de novidade hermenêutica aparece em obras que procuram dialogar com os pressupostos entre a pós-modernidade e a experiência pentecostal, como por exemplo  Pentecostalismo e  Pós-modernidade (Cpad), de autoria de César Moisés, e mais especificamente, a obra de David Mesquiati e Kenner Terra, Experiência & Hermenêutica Pentecostal (Cpad), onde os autores propõem outras possibilidades de interpretação bíblica para a teologia pentecostal.
        Um dos pontos comentados por César Moisés e expresso no livro de Mesquiati e Terra parece receber certa simpatia na obra introdutória à teologia pentecostal, escrita por meu amigo Gutierres Siqueira. Na obra Revestidos de Poder,  Gutierres, que de maneira  competente destrói vários estereótipos que existem no que tange à doutrina pentecostal, faz uma declaração interessante no capítulo 3, que trata da importância da experiência:

"Ora, o que vem antes: a teologia ou experiência? Ora, a Teologia é precedida pela experiência. A teologia é a explicação e reflexão da experiência"[7].

        Tenho firme convicção que Siqueira não está aqui tentando colocar a experiência acima da Bíblia, como ele mesmo expressa nos parágrafos subsequentes do capítulo em questão. Porém, a afirmação de Siqueira é no mínimo intrigante. Ele dá a entender que está se referindo ao conhecimento experimental que o crente tem quando encontra as realidades espirituais da Bíblia, que lhe dá um novo insight, por assim dizer, da realidade de que fala o texto bíblico. 
        Saborear espiritualmente as verdades da Palavra de Deus é uma coisa, mas será mesmo que é essa a ideia principal ou conceitual que César Moisés tenta transmitir em seu próprio livro? Extraio aqui parte da citação de César Moisés feita pelo próprio Siqueira:

"...originalmente, a teologia sempre sucede a experiência, pois ela representa a tentativa de dar sentido ao que aconteceu, procura sistematizar a revelação especial em forma de doutrina e até a própria religião como um todo".

         A quem César está se referindo quando expele a palavra "originalmente"? Aos leitores comuns da Bíblia? A toda a tradição da teologia sistemática da história da igreja cristã? Aos  supostos "teólogos racionalistas" que existiram na época pós-Reforma? Tudo isso é abrangente demais, genérico demais e como consequência, vazio demais para surtir qualquer análise séria em um leitor pentecostal que usa sua massa cinzenta. Porém, a declaração acima tem muita semelhança com a análise do fenômeno religioso nas Ciências da Religião. Caso César Moisés esteja, ainda que de maneira sutil,  falando da experiência original do autor bíblico diante da divindade, então sua declaração precisa ser rejeitada na latrina mais próxima e importa dizer o porquê.

Breve consideração a Hermenêutica Moderna e a Revelação Bíblica:

             Há um problema afirmar que a experiência precede a teologia, caso por teologia se entenda a clássica definição do "falar sobre Deus" segundo a "revelação" que Deus dá. Nesse caso, a experiência ocorrida é verdadeiramente uma experiência lógica, ou seja, é uma experiência  obviamente "sentida", mas igualmente "ouvida" e ouvida de maneira racional. O autor de Hebreus resume as experiências passadas com Deus pelo povo de Israel durante sua história com a simples frase: "Havendo Deus, antigamente, falado..."(Hb 1:1). O primeiro capítulo de Gênesis, logo no início afirma: " E disse Deus" (Gn1:3), e o apóstolo João remete ao princípio e afirma "Era o Verbo" (Jo 1.1). Em toda e qualquer parte, a experiência que Deus dá é mediada por sua Palavra, ela é Lógica (gr. Logos), inteligível e pessoal. Mesmo os alcançados por Deus são aqueles que "ouvem" as palavras de Cristo através da pregação. O apóstolo Pedro exorta que se alguém falar, "que fale segundo as palavras de Deus" (1 Pe 4.11). Logo, a experiência com Deus é sempre "teológica".

           De maneira interessante, o próprio apóstolo Pedro faz uma declaração importante acerca da Bíblia, da revelação e da experiência. Logo após citar  citar sua autoridade como testemunha apostólica na experiência com Jesus no monte da transfiguração, o apóstolo também acrescenta:

"E temos, mui firmes a palavra dos profetas, à qual bem fazeis em estar atentos, como uma luz que alumia em lugar escuro, até que o dia esclareça,e  a estrela da alva apareça em vosso coração" (2 Pedro 1.19).

            A Bíblia não somente traz revelação. Ela é a revelação. Para Pedro, ter a palavra profética é tão firme quanto ter a experiência de ver Cristo transfigurado. É ter a "luz que alumia em lugar escuro".

Conclusão:

Há muito o que dizer sobre as novas tentativas hermenêuticas dentro do pentecostalismo brasileiro. O intuito desse artigo é levar a uma reflexão e alerta sobre a importância da doutrina e teologia pentecostal estarem verdadeiramente alinhados com sua legítima base: A autoridade da palavra de Deus, e usando um método que honre, e não obscureça, tal autoridade no coração dos que leem a Santa Palavra. Tendo isso em mente, tenho por certo que todos seremos abençoados.

Amém!

Sola Scriptura!
Soli Deo Gloria

Notas:

1.HORTON, Stanley (ed). Teologia Sistemática: uma perspectiva pentecostal. Trad:Gordon Chow. Rio de Janeiro: CPAD, 1996.p.31.
2.PEARLMAN, Myer. Conhecendo as Doutrinas ds Bíblia. Trad:Lawrence Olson. São Paulo: Editora Vida, 2006. p.28.
3. MENZIES, William W. HORTON, Stanley H. Doutrinas Bíblicas: os fundamentos de nossa Fé. Trad.João Marques Bentes. Rio de Janeiro: CPAD, 1995.p.22.
4.ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica.Trad. César de F. A. Bueno Vieira. São Paulo: Vida Nova, 1994 .p.74.
5. Uma obra recente que defende vários elementos do método alégorico de interpretação dentro da teologia protestante é o livro de Craig A. Carter: Interpreting Scripture with the Great Tradition: Recovering the genius of pre-modern exegesis (Baker Books, 2019). O livro de Carter possui vários pontos positivos dignos de nota, todavia, vários de seus questionamentos acerca do valor do "sensus plenior" como forma de combater a teologia liberal (uma das propostas do livro) são discutíveis.
6. Tal tipo de pensamento é encontrado em Amos Young, famoso teólogo de origem pentecostal do seminário teológico Fuller. Para ver uma rápida, porém firme crítica à posição de Yong em português, basta consultar o livro A Trindade no Evangelhode João, de Köstenberger & Swain (Edições Vida Nova).
7. SIQUEIRA,Gutierres. Revestidos de Poder: Uma introdução à teologia pentecostal. Rio de janeiro: CPAD, 2018. p.49

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