No ano de 2014, o
mercado editorial brasileiro recebeu uma obra que trata de um assunto bem pouco explorado no Brasil: O estudo da manuscritologia,
ou crítica textual bíblica; em
especial no que tange ao exame do Novo testamento. Em Manuscritologia do
Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o Final do evangelho de Marcos,
o pastor presbiteriano Paulo Anglada explora questões difíceis e técnicas em
um linguajar simples e direto, sem perder a erudição e muito menos a ortodoxia
protestante de linha Reformada, com isso o leitor é desafiado a lidar com a
intrincada história dos manuscritos que compõem o Novo Testamento.
O livro do
Reverendo Anglada evita o tecnicismo constante nessa área, o que geralmente desestimula os leitores em geral e até mesmo seminaristas. Após breve
introdução, o primeiro capítulo lida com a História do Texto, lidando com as
mais importantes descobertas de manuscritos dos quatro primeiros séculos, como
também com o surgimento do primeiro texto impresso, feito pelo humanista Erasmo
de Roterdam e publicado em 1516 e a sua “rival”, a Poliglota Complutesiana,
além das edições subsequentes feitas por vários homens como Robert Stephanus,
Theodore Beza, os irmãos Elzevir, o que veio a ser chamado de Textus
Receptus. Após esse período, surgiram outros textos, que cada vez mais se
afastaram do Textus Receptus até a publicação do Texto de Westcott e Hort, que
se baseou em dois manuscritos provenientes de uma região: O Egito. Tais
manuscritos em muito se diferiam dos manuscritos usados por Erasmo, que em
geral representavam a maioria dos manuscritos gregos do Novo testamento, que
formavam o tipo de Texto Bizantino/Siríaco. Com isso, surgiram as mais variadas
traduções, todas adotando o texto de Westcott e Hort como base (que depois foi
aperfeiçoado através dos trabalhos de críticos textuais como Kurt Aland e Bruce
Metzger). Por fim, o primeiro capítulo fecha com as reações modernas do defensores
do Textus Receptus: existem duas alas, a
erudita e a popular. Da primeira, há nomes como Edward Hills e Theodore P.
Letis, e da segunda, mais fundamentalista e radical, nomes como D. A. Waite e
Peter Ruchnan. Outra reação aos textos críticos de Westcott/Hort (atualmente
representado pelas modificações de Ebheard Nestle e Kurt Aland) foi o
surgimento da teoria do Texto Majoritário moderno, com proponentes como Zane
Hodges, Wilbur Pickering e Jakob Van Bruggen.
Nos demais
capítulos há uma breve análise de cada corrente textual existente. Cada
capítulo lida com as teorias textuais a partir de análise das obras de seus
representantes mais respeitados: os defensores do Textus Receptus
(capítulo 2), os defensores do texto Eclético/crítico (capítulo 3) e os
defensores do Texto Majoritário, do qual o próprio Anglada é um defensor
(capítulo 4). Por fim, há um estudo detalhado sobre o final do evangelho de
Marcos, rejeitado pelos críticos Textuais modernos como inautêntico (capítulo
5).
A tese de
Anglada é clara: “Deus não confiou o texto das Escrituras aos caprichos da
história. Ele determina cada acontecimento da história com vistas a consecução
de seus propósitos eternos – inclusive, e especialmente, aqueles que dizem
respeito à preservação da sua Palavra” (p. 14). Anglada encontra dificuldade
com as teorias de Westcott e Hort, mostrando que o pressuposto desses eruditos
vai contra as evidências de transmissão textual. Sendo que um dos grandes
problemas é que tais críticos veem a Bíblia como um livro comum, e sua
transmissão como normal, assim como elaboraram teorias naturalistas acerca do
texto a partir de dois manuscritos extremamente conflitantes entre si (só nos
Evangelhos são mais de 3.000 vezes). A crítica de Anglada, detalha no capítulo
3, é forte e certeira contra a corrente textual que domina os Textos gregos do
Novo Testamento e as traduções modernas. O capítulo 4 se distingue de certa
forma dos demais, pois ao analisar a Corrente Textual que defende o chamado
Texto Majoritário, nota-se a identificação textual do autor, que nos dá uma
excelente definição acerca da visão textual Majoritária:
“A maneira, entretanto, pela qual Deus preserva a Palavra
inspirada, não é explicitada na Bíblia, devendo ser concluída por investigação
adequada das evidências históricas. Na concepção dos defensores do texto
majoritário, as evidências históricas indicam que a preservação do texto do
Novo testamento não ocorreu através da preservação sobrenatural dos autógrafos,
nem pela inspiração dos copistas, guardando todos eles de erro, nem de uma
determinada edição do Textus Receptus, nem em um número não
representativo de manuscritos contraditórios provindos de uma única região.
Para eles, o texto original foi preservado na grande massa de manuscritos de
todos os tipos, procedentes de lugares variados, ao longo dos séculos”
(pp.125-126).
Após tratar
sobre os métodos de investigação textual dos proponentes do texto majoritário,
o autor também está ciente de alguns problemas relacionados a essa teoria. Por
fim, o capítulo 5 trata acerca da problemática envolvendo o chamado “final
longo de Marcos”, onde o autor defende com vigor o final tradicional de Marcos,
a partir da tradição majoritária. Na conclusão, faz-se uma breve recapitulação do
que foi tratado, chegando às considerações finais. Há ainda dois apêndices, o
primeiro mostrando a história do Texto Impresso e o segundo apresentando sugestões para
pesquisa direcionada a estudantes de bacharelado e mestrado. Dentre as
sugestões destacam-se as pesquisas sobre a manuscritologia na Idade média e
dentre os puritanos, finalizando, assim, a obra.
- Análise:
A obra de
Anglada apresenta uma qualidade impressionante no que diz respeito a uma visão
que honra as escrituras, mas não deixa de estar sujeita a críticas em certas
afirmações. Vejamos pontos positivos e negativos a seguir.
I. Pontos positivos:
a) Primeira obra publicada no Brasil a defender o texto
Bizantino: Em um mercado saturado com obras que defendem a baixa-crítica do
novo testamento segundo os padrões de Westcott e Hort, a obra de Anglada é um
contra-ponto adequado e equilibrado, dentro de uma perspectiva
reformada-confessional, algo raro no Brasil. A maioria das defesas em prol do
texto-tipo bizantino são de fundamentalistas, que defendem de
maneira implacável o Textus Receptus.
b) Apresentação clara das três perspectivas quanto ao
texto do Novo Testamento: o pastor Anglada mostra, de maneira clara e
sistemática, as três visões textuais acerca do texto do Novo Testamento: os
defensores do Textus Receptus, do texto Eclético e do Texto Majoritário (sendo
este último uma atualização da primeira). Em geral, a obras que defendem o texto
crítico colocam os proponentes do Textus Receptus e Majoritário no mesmo
grupo. Ainda que as semelhanças sejam enormes entre os dois grupos, e haja em
certas ocasiões uma cooperação mútua, há diferenças evidentes nas metodologias
de cada um. Basta consultar as obras de Frederick Nolan e Edward Hills (que
defendem o Textus Receptus) e a visão de Zane Hodges e Maurice Robinson
(que defendem o Texto Majoritário em sua configuração moderna) para ver a
diferença entre as escolas.
c) Correta diferenciação entre os defensores do Textus
Receptus: o autor consegue notar a diferença entre os defensores eruditos
moderados do Texto Recebido, como Edward Hills e os de linha radical como D. A.
Waite, Peter Rucknahm e Gail Riplinger.
Algo também não diferenciado pelo opositores do Texto tradicional.
d) Excelente crítica quanto à escola histórico-crítica e a
produção do texto crítico do Novo Testamento:
O Brasil carecia de uma obra que combinasse tanto questões técnicas
quanto uma defesa firme do Texto Grego Tradicional, partida de um erudito que
valoriza a piedade cristã e o método histórico-gramatical de interpretação das
Escrituras. Com exceção da obra de Wilbur Pickering, o mercado brasileiro está
repleto de obras que defendem o método histórico-crítico, dentre os quais se
destacam Wilson Paroschi, Kurt Aland, Daniel Wallace e Bruce Metzger. O livro de Anglada faz uma crítica
respeitosa, porém firme, a um criticismo textual que não honra as Escrituras
como Palavra de Deus. Só esse motivo já é suficiente para considerar tal obra
como importante.
II. Pontos negativos:
a) A Falta de uma análise mais justa acerca da obra de
Edward Hills: Anglada faz crer que os defensores do Textus Receptus não analisam as evidências. Mesmo fazendo uma
diferença entre os defensores moderados e radicais do Textus Receptus, em sua
crítica à corrente textual, ele parece jogar todos no mesmo pacote, mesmo
Edward Hills. Ainda que reconhecendo a excelente erudição de Hills (graduado em
latim e Phi Beta Kappa da universidade de Yale, bacharel em Teologia pelo
Westminster Theological Seminary, mestre em teologia pelo Columbia Theological Seminary e doutor
em Crítica textual pela Universidade de Harvard), as críticas que faz a Hills
são pungentes:
“A defesa do Textus Receptus fundamenta-se e é
inteiramente explicada pela doutrina da preservação providencial. Entretanto,
visto que as escrituras não declaram explicitamente a preservação de um
determinado tipo de texto (no caso, do Textus
Receptus), o uso da doutrina é muitas vezes abusivo e injustificado. A
aceitação das explicações de Hills e de outros proponentes do TR é matéria de
pura fé na interpretação que eles oferecem” (Anglada, p.94).
Há muito que se pode dizer em defesa de Hills (e outros
defensores do Textus Receptus), que
abraça o Textus Receptus como um
texto legítimo. Partamos para alguns deles:
a.1) A filosofia cristã de Hills é Reformada e Pressuposicional.
Como
estudante do Westminster Seminary, Hills foi treinado pelo célebre
Cornelius Van Till, que defendia uma forma distinta de apologética: A
apologética pressuposicional, que ao contrário da clássica ou evidencialista,
possui o ponto de partida para uma cosmovisão saudável a pressuposição do Deus
Trino como revelado na Escritura, atentando nas proposições nela contidas. No
dizer de Hills: “nas escrituras, Deus revela: a si mesmo, não meras evidências
da sua existência, não meras doutrinas acerca de si mesmo, não uma mera
história de seu lidar com os homens, mas A SI MESMO” (The King James Version Defended, p.4) e ainda: “As escrituras,
portanto, são o fundamento da fé. Nelas a revelação de Deus acerca de si mesmo
não é obscurecida pelo erro humano” (Believing
Bible Study, p.4). Haja vista que as Escrituras declaram claramente que
seriam preservadas no passar das eras, de maneira perfeita pelo Senhor (Mt
24.35), o que nos leva a atentar para a preservação divina através da história
do texto bíblico, algo que está em sintonia com o que se encontra nas
confissões de fé de Westminster, Londres e Savoy. Por isso, o que Hills faz é
integrar pressupostos bíblicos (a lógica da fé) com a história do texto, todavia,
o faz sem torcer as evidências a seu favor. Pelo contrário, como crítico
textual habilitado, Hills mostra que a questão não é entre os que defendem o
Textus Receptus de maneira cega e os defensores do Texto Eclético (e até
mesmo do Majoritário), com base do estudo científico, mas sim na interpretação
que se dá acerca das evidências.
Tratando acerca dos estudos
feitos dentro da perspectiva naturalista, Hills comenta: "Há dois métodos de
Criticismo Textual do Novo testamento, o método cristão consistente e o método
naturalista. Estes dois métodos lidam com o mesmo material, os mesmos
manuscritos gregos, e as mesmas traduções e citações bíblicas, mas eles
interpretam esse material de forma diferente” (King James Version Defended, p.3)
e acrescenta: “Nos estudos bíblicos, na filosofia, na ciência, e em qualquer
outro campo do saber devemos começar com Cristo e aí então trabalhar nossos
princípios básicos de acordo com a lógica da fé. Este procedimento nos mostrará
como utilizar o aprendizado vindo de eruditos não-cristãos de uma forma que nos
aproveitemos de seus estudos” (King James Version Defended, p. 114). Rebatendo a afirmação que isso leva a um
agnosticismo intelectual, Hills afirma: “Isso significa que nos tornamos
obscurantistas? e perdemos todo o nosso interesse nos estudos textuais do Novo
testamento? Nós franzimos o cenho no estudo dos manuscritos do novo testamento
e desencorajamo-lo por medo de provar que estamos errados? de modo nenhum! Pelo
contrário, congratulamo-nos com a investigação honesta dos documentos do novo
testamento, tanto mais que os resultados dos últimos 300 anos de tais estudos,
bastante interpretados, apoiaram as reivindicações do Texto Tradicional e do
Textus Receptus” (Believing Bible Study, p.214-215).
a.2) Hills não defende uma visão perfeccionista do Textus
Receptus.
Ainda que possa haver uma tendência em Hills de defender o
Textus Receptus de forma indiscriminada, ele claramente mostra que não concorda
com as emendas conjecturais feitas por Calvino e em especial por Theodore Beza
na publicação de seu texto grego. Para ele, o Textus Receptus não se reduz a
uma única edição, mas a um conjunto de várias edições que apresentam essencial e
substancialmente o mesmo texto, ainda que haja pequenas variações em um lugar e
outro. Acerca da presença de algumas variantes textuais, Hills comenta:
“... Deus não revela todas as verdades com igual clareza. Na
crítica textual bíblica, como em qualquer outro departamento do conhecimento,
ainda há alguns detalhes em relação aos quais devemos nos contentar em
permanecer incertos. Mas a providência especial de Deus tem mantido estas incertezas
para baixo a um mínimo. Portanto, se acreditarmos na preservação providencial
especial das Escrituras e fizermos deste o princípio principal de nossa crítica
textual bíblica, obtemos certa certeza, toda a certeza que qualquer homem pode
obter, toda a certeza de que precisamos” (King
James Version Defended, p.224).
a.3) A visão de Hills é Reformada e a estrutura de seu
pensamento segue a linha de Cornelius Van Till.
Tanto no Livro The King
James Version Defended, quanto em sua obra gêmea Believing Bible Study, Hills deixa claro que, para se abordar o
material acerca do criticismo textual, não se apode adotar uma perspectiva
naturalista. Aqui vemos a perspectiva da apologética pressuposicional na defesa
dos manuscritos do Novo Testamento.
b) Anglada apresenta uma opinião comum acerca de Erasmo e
da publicação do texto grego, em especial sobre Apocalipse: O pastor
Anglada acaba repetindo alguns mitos acerca do último capítulo do livro de
apocalipse no Texto grego editado por Erasmo, onde supostamente o erudito
Holandês retraduziu o texto da vulgata para o grego. O grande problema é que
não há nenhuma evidência concreta que esse tenha sido o caso, e tal história
vem sendo amplamente contestada por alguns estudiosos modernos, juntamente com
os chamados “mitos erasmianos”, dentre os quais destacam-se a história da “pressa”
em Erasmo de publicar seu texto grego, a história do Comma Johanneum (1 Jo 5.7) no Texto Recebido, os poucos manuscritos
utilizados por Erasmo, etc. Tais mitos são analisados detalhadamente por Jeff
Ridlle, pastor reformado e estudioso de questões textuais, podendo serem estas
lidas com detalhes aqui.
c) A visão do Texto Majoritário não é necessariamente
Reformada.
Ainda que colocada como uma posição totalmente reformada e
adotada por alguns professores reformados como Jakob van Brueggen, a
perspectiva do texto Majoritátio surgiu dentro de um contexto
dispensacionalista de alguns professores do Dallas
Theological Seminary, como Zane Hodges, William Farstard e Wilbur Pickering. Ainda que tais homens sejam conhecidos por sua piedade e teologia conservadora,
a visão que mais se aproxima da perspectiva reformada, e que está de acordo com a
confissão de fé de Westminster, é a adotada por Hills.
d) Pouco realmente se dá valor às pressuposições na hora
da metodologia do estudo dos manuscritos, fazendo com que a estrutura se
assemelhe à da crítica, no que tange à linha de estudos.
Ainda que haja méritos notáveis na posição do Texto
Majoritário (que muito se assemelha a posição do Textus Receptus), o método em si acaba por também querer passar uma
visão de neutralidade e objetividade científica, e também acaba por tentar,
ainda que em menor escala, fazer uma reconstituição do texto original do Novo
Testamento em grego. Tal perspectiva passa uma ideia de erudita e agrada a
ouvidos acadêmicos, porém não necessariamente está totalmente de acordo com os
princípios da Palavra de Deus. O conselho de Hills é precioso aqui: “O
criticismo textual do Novo Testamento do homem que crê na inspiração e
preservação providencial das Escrituras como verdadeiras difere daquele que não
crê assim... o homem que abraça essas doutrinas como verdadeiras é incoerente se ele não as der um lugar proeminente em seu tratamento do texto do Novo
testamento, um lugar tão proeminente que faz com que criticismo textual do Novo testamento seja
diferente do criticismo de livros antigos, pois se essas doutrinas são verdadeiras,
elas demandam tal lugar” (King James Version Defended, p. 3).
- Conclusão:
A despeito de certas incoerências na defesa de Anglada do
Texto Majoritário, e a falta de observação nos detalhes concernentes à visão
Reformada do Textus Receptus, a obra em si tem muitas qualidades e é uma
boa fonte de consulta para seminaristas, professores de escola dominical e
pastores - além do público geral. É um alívio editorial em um mercado saturado
de obras que promovem o texto crítico.
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