quarta-feira, janeiro 08, 2014

O Deus dos Vivos: Uma análise bíblico-teológica acerca da vida após a morte.


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                             Imagem:  A Ressurreição de Lázaro (por James Tissot)




"hÆyüxÇyáh rebÆFg tûmÃy-£i'

"Morrendo o homem, porventura tornará a viver?" (Jó 14:14).

"Qeoj de ouk estin nekrwn( alla
zwntwn¾pantej gar autw zwsin"

"Ora, Deus não é Deus de mortos,mas de vivos.
 Todos pois, para Ele, estão vivos" (Lc 20:38).


Um dos assuntos que mais assusta a mente humana se dá no que se refere a vida após a morte.  A "clássica" e  angustiante pergunta de Jó, feita em seu leito de desespero certamente já foi compartilhada pelas mais variadas mentes no decorrer da história. Em escatologia, um dos assuntos em geral pouco abordados é acerca da doutrina  do estado intermediário, da condição dos que morreram em Cristo e dos ímpios antes da volta de Jesus.  Tal fenômeno é compreensível, pois, no dizer de Stanley Horton (Nosso Destino, p.37); "A Palavra de Deus...pouco revela acerca da vida após a morte...está mais preocupada em nós mostrar como viver de modo agradável a Deus aqui nesta terra. Deus quer que estejamos preparados para a volta de Jesus e as glórias que se seguirão". A afirmativa de Horton é totalmente bíblica. A Bíblia nos mostra que a esperança última do crente não é em estar em um bom lugar com Deus depois da morte, ainda que, segundo Paulo, seja algo extremamente prazeroso e muito melhor do que nossa condição atual nesta vida, (Fp 1:23), mas sim da ressurreição do corpo e glória eterna com Ele. De maneira sábia e conhecendo a vã curiosidade humana, o Senhor só revelou o necessário no que tange a esse período, porém, é importante ressaltar, essa revelação veio de maneira clara e inequívoca: os que morreram ainda vivem.

A resposta do Senhor Jesus, ao ser indagado pelos saduceus em Lucas 20 é clara e interessantíssima. Os saduceus, crendo que não havia ressurreição, tentam apanhar Jesus através de uma historieta e tendo como base a teologia do Pentateuco (que era os únicos livros para eles tidos como canônicos), que aparentemente não falava acerca da Ressurreição dos mortos. A resposta de Cristo é impactante: "errais por não conhecerdes as Escrituras, nem o poder de Deus" (Mt 22:29). Ao responder o enigma teológico, Jesus prova a ressurreição através das palavras de Deus, escritas por Moisés em Êxodo 3:6/15, na qual Deus afirma que era o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. O Senhor na ocasião não se apresentou a Moisés como o Deus que se revelara aos patriarcas muitos anos atrás, mas como o próprio Deus destes, dando a entender que mesmo passados muitos anos depois de sua morte, Ele continuava sendo o seu Deus, e igualmente os santos estavam vivos diante dele. O foco de Cristo aqui  certamente não é o estado intermediário, mas a ressurreição futura, porém a comparação feita por nosso Senhor da vida humana com a existência de anjos, que eram espíritos imortais, claramente mostra igualmente a existência  imaterial e imortal da alma. O Deus que se revelou aos patriarcas continuava sendo o seu Deus e continuava cuidando deles, sendo que um dia providenciaria a sua ressurreição. Tal resposta, de tão bem dada, fez até mesmo os escribas (provavelmente associados aos fariseus) "vibrarem" e elogiarem a Cristo (vrs 39).

Há um detalhe importante a ressaltar: nosso Senhor mostra que já no Pentateuco a esperança da ressurreição é sugerida. Sendo assim, uma reflexão bíblica a partir dos postulados de Nosso Senhor é de suma importância para termos uma correta visão acerca da doutrina bíblica acerca da vida após a morte, assim também como a ressurreição dos mortos, e até mesmo, para confrontarmos ideias e perspectivas que em geral são aceitas no mundo teológico da atualidade acerca dessa doutrina. O ponto de partida se dá no que o Antigo Testamento diz acerca da esperança futura, depois seguiremos para as afirmativas neotestamentárias.


I) A Esperança Futura no Antigo Testamento.

É comum até hoje nos círculos teológicos liberais verem a visão do estado intermediário, mais comumente conhecido como  Hades no Novo Testamento como uma cópia judaica do Hades grego, dividido em compartimentos entre justos e ímpios.  De acordo com essa visão, o povo de Israel não tinha nenhuma perspectiva acerca da vida após a morte, sendo que o foco vétero-testamentário nada mais se resume a esta vida, sendo que ao homem nada mais restava a não ser descer ao Sheol (hb. mundo dos mortos, sepultura, ou sepulcro). Outros dentro dos círculo liberais creem que o povo de Israel tinha um vago entendimento acerca de uma vida após a morte, sendo que ao morrer, tanto ímpios quanto justos iriam para o (sheol), um lugar sombrio, de quase não-existência, onde os seres humanos não passavam de "fantasmas" ou "espíritos" (hb.  £yi'Apèr - rephaim, cf. Is 14:9, 26:14). Tais visões certamente não fazem jus a visão do Antigo Testamento acerca da esperança futura¹, sendo confrontadas por teólogos conservadores das mais variadas perspectivas confessionais, como veremos a seguir. Dentre as mais variadas respostas ao desafio da teologia histórico-crítica, vejamos algumas a seguir:

Um dos que discordam claramente da perspectiva apresentada pela teologia histórico-crítica é Stanley Horton. Acerca da proposição que os israelitas não tinham nenhuma perspectiva quanto a vida após a morte, Horton afirma que "seria muito estranho e inteiramente contrário a cultura que os cercava. Os egípcios grandes preparações para o que acreditavam que aconteceria na vida após a morte. Também acreditavam num além túmulo". Outro elemento importante é que a perspectiva que não possui um significado da vida após a morte é totalmente estranha a própria característica antropológica do homem, em especial das culturas antigas da humanidade. Todas as religiões antigas possuíam alguma noção ou reflexão sobre uma vida após a morte, como pontua Charles Hodge: "É a crença comum da humanidade, tal como está revelada na Bíblia, e é parte constitutiva da fé da igreja universal, que a alma pode existir e existe, e que age após a morte"². Salomão mesmo afirmou que Deus colocou a eternidade no coração do homem (Ec 3:11), fomos criados para termos um eterno relacionamento com Deus, sendo que a morte é vista com uma interrupção disso é propriamente um inimigo a ser derrotado (1 Co 15: 26). À luz de tudo isso, há realmente indícios no Antigo Testamento de uma esperança após a morte? É necessário atentarmos para algumas palavras-chave e o contexto onde estão inseridas.

a) Nephesh (Alma, vida). É comum pensar no âmbito teológico que a  "alma" nada mais é do que a o ser humano como ser vivo, sem todavia, denotar uma essência imaterial, segundo Hans Walter Wolff , em sua obra clássica Antropologia do Antigo Testamento: "Nepesh deve ser vista... aqui como a figura total do ser humano e especialmente com sua respiração"³. É certo que não devemos possuir uma visão grega(mais propriamente platônica), no qual o corpo e  a alma são extremamente distintos, sendo o primeiro nada mais é do que uma prisão da alma. A Bíblia vê o homem como uma unidade, sendo que a estrutura do homem está completa se possuir um corpo. Paulo afirma que sem o corpo estamos com oque nus (2 Co 5:1-4), ou seja, não estamos completos. Todavia, é comum estudiosos afirmarem que nephesh é utilizada tanto para descrever a vida dos homens quanto dos animais e por isso não aponta, ainda que veladamente, a uma dimensão imaterial do homem, afirmação esta que simplesmente não é sustentável de maneira nenhuma à luz dos textos bíblicos. O nefesh humano, ao contrário dos animais, fora soprado diretamente por Deus (Gn 2:27), seno que ao contrário dos animais, a nephesh humana é a imagem e semelhança de Deus (Gn 1:27, o que também inclui o coro físico . Ainda que simbolicamente associado com o ato de respirar (evidenciando assim, sua existência), há algo muito além de um simples existir animal no termo Nephesh. Gênesis 35:18 diz acerca da morte de Raquel que: "saindo-se-lhe a alma[nephesh], porque morreu", ao contrário de Walter Wolff (Antropologia, p. 38), não pode se presumir aqui que simplesmente Raquel parou de respirar; a descrição é de sua nephesh "saindo-lhe do corpo", sendo que a nephesh igualmente pode voltar ao corpo de acordo com o propósito de Deus, como visto na oração de Elias para que a alma (nepesh) volte ao corpo do menino morto (1 Rs17:21). Salomão em Eclesiastes também  acerca do  "espírito[ruah] volte a Deus que o deu" (Ec 12:7). Se assumirmos que nephesh unicamente trata de uma vida existencial e associada a respiração, sendo assim igualmente o caso deu seu paralelo xûr (ruah), não haveria motivo para ler "Ruah  Elohim" (Espírito de Deus) em Gênesis 1  como algo maior do que um "sopro" de Deus (Em Hebraico, ruah pode significar tanto "espírito" quanto "sopro", é óbvio que a Bíblia trata claramente  "Ruah Elohim" como inteligente, poderoso e pessoal). 
        O próprio Senhor Jesus demonstra a imortalidade da alma em Mateus 10:28. Jesus afirma: "não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma (gr.  psichê, o equivalente grego de "nepesh), temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo". Segundo o teólogo batista Wayne Grudem (Teologia Sistemática, p. 390): "Aqui a palavra alma claramente se refere à parte da pessoa que persiste após a morte. Não pode significar 'pessoa' ou 'vida', pois não faria sentido falar daqueles que 'matam o corpo e não podem matar a pessoa', ou que 'matam o corpo e não podem matar a vida', a menos que haja algum aspecto da pessoa que continue vivo depois da morte do corpo". Na cruz, Jesus  entregou o espírito (pneuma) ao Pai, sendo que logo a seguir, expirou (Mc 15:37 - Mateus afirma que ele rendeu o espírito, cf. Mt 27:50), Isaías, ao falar acerca de Cristo séculos antes, afirmara que ele "derramaria sua alma[nepesh] na morte" (Is 53:12). Geisler (Teologia Sistemática, Vol. 2, p.54) é enfático: "Como já demonstrado, alma e corpo são uma unidade, e não uma identidade. Se elas fossem idênticas, então,obviamente uma não poderia viver sem a outra... por força de analogia, a alma está para o corpo como o pensamento (na mente) está para a folha de papel, o conceito permanece quando o material perece" e acrescenta: "A Bíblia nos informa que a alma, de fato, sobrevive à morte do corpo, e ela aguarda a ressurreição do corpo...mas a sobrevivência de uma alma sem um corpo não é impossível, nem contraditória"[4].  Por isso, a afirmação de George Ladd (Teologia do Novo Testamento, p. 627) de que na visão hebraica "nem nephesh nem ruah são tidos como uma parte do homem capaz de sobreviver à morte de basar [carne]" deve ser firmemente rejeitada[5]. Ainda que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento vejam o homem como um unidade, fica-se claro que há uma distinção ou aspecto importante na constituição essencial do ser humano na antropologia bíblica.

b) Sheol (Mundo dos mortos, sepultura): A Afirmação de Ladd (Ibid, p.259) que "de acordo com o Antigo Testamento, o Seol não é um lugar de punição. O destino dos ímpios e dos justos é o mesmo." é firmemente confrontada por Horton (op. cit, p. 45): "Algumas passagens indicam claramente o Sheol é um lugar de punição para os ímpios (Sl 9:17; cf.  Nm 16:33, Jó 26:6; Sl 17:18/49:13-15..)", Berkhof (Teologia Sistemática,p. 630) tem opinião semelhante: " Se, conforme a exposição bíblica, o sheol-hades é um lugar neutro, sem distinções morais, sem bem-aventurança por um lado, mas também sem sofrimento positivo por outro, lugar de qual todos descem igualmente, como pode o Antigo Testamento falar da descida dos ímpios ao sheol em termos de advertência, como o faz em diversas passagens, como Jó 21:13; Sl 9:17; Pv 5:5, 7:27; 9.18;5:24;23:4? Como pode a Bíblia falar da ira de Deus ardendo ali, Dt 32:22, e empregar o termo sheol como sinônimo de Abadon, isto é, destruição, Jó 26:6; Pv 15:11; 27:10?".
       
N. T. Wright, em sua famosa obra A Ressurreição do Filho de Deus, ainda que apresente uma visão um tanto quanto diferente da apresentada por Horton e Berkhof, define: "Sheol, abaddon, cova, sepultura. A escuridão, regiões profundas, terra do esquecimento. Estas expressões quase intercambiáveis denotam um lugar de trevas e desespero; um lugar onde não é mais possível desfrutar a vida, e onde a presença do próprio YHWH não é mais desfrutada...Como em Homero, não existe a sugestão que estejam se deleitando; trata-se de um mundo lúgubre e tenebroso...se há níveis diferentes do sheol, eles são de miséria e degradação"[6]. Não há como concordar que era isso que os santos do Antigo Testamento tinham como perspectiva após a morte. Mesmo Ladd, de maneira inconsistente e contraditória, afirma que " existem poucas, mas contundentes declarações no Antigo testamento, no sentido de que a morte não será capaz de destruir a comunhão que o povo de Deus desfruta com ele" e também que "Os salmistas não podem conceber que a comunhão com com Deus possa alguma vez ser rompida, nem mesmo pela morte"(op. cit., p. 259), a bem da verdade, os salmistas, a meu ver, nada mais demonstram vida normal e devocional do crente vétero-testamentário.  Os salmos 49 e 73, por exemplo, demonstram claramente e firmemente o contraste entre crente e o ímpio e o destino dos dois de maneira singular. No primeiro, o salmista faz um alerta para que o crente não inveje a prosperidade daqueles que desfrutam glória e honra nesta vida, pois mesmo os ricos hão de ver a corrupção (vrs 9-12), sendo que tais honras, após a morte, não possuem valor (vrs16-17). Porém acerca do seu destino, o salmista possui um pensamento totalmente diferente:

"Mas Deus remirá a minha alma do poder do "sheol", pois me receberá" (vrs 15).

Aqui não há simplesmente um livramento ocasional da sepultura,  mas sim um total contraste com aqueles que vivem para as coisas terrenas e que perecerão: Mesmo morto, Deus cuidará do salmista e o receberá. Como o receberá? A resposta implícita é: para Si mesmo. Aqui há tanto a certeza do cuidado de Deus pelo crente mesmo após a morte quanto da remissão de Deus do poder da morte e da condenação, o que aponta, claramente, para algo ainda maior: o resgate da própria morte.

O caso de Asafe ainda é mais pungente. Após passar um período de perplexidade acerca da prosperidade dos ímpios, que não possuíam apertos em sua morte (Sl 73:3-4), mesmo eles sendo rebeldes e odiadores de Deus (vrs 5-12), porém ao entrar no templo de Deus e contemplar a sua glória e entender a futilidade e o final da vida ímpia (vrs 17), estes cairão e serão destruídos, porém o salmista, arrependido, sabe que está sempre diante da presença de Deus. Asafe então proclama uma das mais firmes e belas confissões de fé:

"Todavia, estou de contínuo contigo; tu me seguraste pela mão direita, Guiar-me-ás pelo teu conselho, depois, me receberás em glória.A quem eu tenho no céu senão a ti? e na terra não quem eu deseje além de ti. A minha carne e o meu coração desfalecem mas Deus é a fortaleza do meu coração e a minha porção para sempre" (Sl 73:24-26).

Não há dúvida que os textos acima expressam firmemente a garantia do cuidado e da direção de Deus nesta vida, para depois, sermos recebidos em glória. Para um legítimo crente do Antigo Testamento, de maneira nenhuma a morte o poderia separar da presença de Deus.

Vejamos, todavia, os argumentos apresentados para provar o contrário dessas asserções:

-  A expressão Sheol, nada mais é do que um sinônimo para selputura (hb. qever).

Este argumento, expresso repetidas vezes por teólogos liberais e até mesmo por alguns conservadores, não encontra respaldo nos textos citados anteriormente. Acerca dessa afirmação, Horton escreve: "quando a Bíblia fala de sepultura, de uma maneira inconfundível como quando os israelitas perguntaram a Moisés:'Não havia sepulcros no Egito, para nos tirardes de lá, para que morramos neste deserto? (Ex 14:11) geralmente é usada outra palavra hebraica: qever". É bem verdade que em determinados textos, sheol e qever são tratados como sinônimos, porém têm-se a existir neste caso mais uma associação de idéias do que um significado exato[7].

- Em geral, os crentes do Antigo Testamento, como Jó, Jacó, Salomão e Ezequias (Jó 7:7-10, Gn   37:35, Ec 3:19-21, Is 38:17-18).  demonstram ceticismo e descrença quanto a uma realidade futura.

Essa declaração teológica, repetida ad infinitum pelos teólogos liberais e conservadores que adotam a hermenêutica histórico-crítica, ignora um detalhe contextual básico e importante: todas as falas foram proferidas por crentes em forte desespero e  sentimento de desilusão. A experiência de Jó revela  o retrato de um homem confuso, depressivo e angustiado,que pensa estar sendo alvo do castigo de Deus (Jó 7:20), um homem que varia entre  firmes expressões de fé a gritos de dúvida e até mesmo arrogância diante do Todo-poderoso, tal elemento perpetua todo o livro de Jó. Em um determinado momento, Jó declara que do que um homem é impossível um homem justificar a si mesmo diante de Deus, pois sabe que não têm como responder diante d'Ele (Jó 9:1-4), porém, apenas alguns minutos depois, clama em amargura para que Deus o faça saber porque está contendendo contra Ele, pois não acha justo o que está passando (Jó 10:1-22)! Tais questionamentos perpassam todo livro até chegar ao clímax com a soberana resposta de Deus nos capítulo 39 a 42. É interessante notar que o problema de Jó não está na morte em si, mas sim em morrer diante da ira de Deus. Ele não consegue ver onde tenha cometido pecado e por isso, quer se encontrar diante de Deus antes que vá para o lugar de "sombra e morte" e "trevas" (Jó 10-22). Por isso, a afirmação de N. T. Wright (Ressurreição, p.158-159), que as ideias expressas por Jó no capítulo 7 sejam características do pensamento comum da época vétero-testamentária não é plausível e não consegue esquivar-se de certos questionamentos. Ainda mais com a declaração de Jó em 19:25-27, que expressa uma firme convicção:

"Porque eu sei que o meu redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra, e  depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus, vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros, o verão, e por isso, o meu coração se consome dentro de mim".


Ainda que Wright afirme  "quase com certeza" (ibid, p. 159) que o texto citado não está tratando aqui de uma expressão em uma esperança futura, ele não apresenta nenhum argumento conclusivo, apenas aponta possíveis "problemas de tradução", "o que fora dito nos textos anteriores" e "obscuridade no texto", sendo que sua assertiva já fora questionada e rebatida por outros estudiosos, como Gleason Archer, Norman Geisler e Francis I. Andersen . [8]. O hebraico no  27 é enfático, Jó fala acerca de si mesmo, sendo que tem firme esperança de sua vindicação, e mesmo consumida a sua pele, ainda em minha carne ele verá a Deus. isso será possível pelo seu Redentor, o Go'el que se levantará sobre a terra[9].

O caso de Salomão em Eclesiastes é semelhante ao de Jó. É extremamente perigoso utilizar as declarações de Eclesiastes (como as que aparecem em Ec 3:19-21) para definir a visão israelita padrão acerca da vida após a morte. A bem da verdade, os primeiros capítulos de Eclesiastes não podem serem tomados como padrão do crente no Antigo Testamento pois descrevem a vida  partir de um ponto de vista de alguém desiludido, que encara todas coisas da vida como vapor e sem sentido. Salomão, aqui, claramente descreve seu pensamento na época de sua apostasia e longe de Deus. É interessante notar que o próprio livro ainda afirma que o espírito do homem voltará a Deus, que o deu. No final, o próprio Salomão admite a vida  na verdade é  um dom de Deus, que jugará todas as obras feitas, quer sejam boas, quer sejam más.

O caso de Jacó e Ezequias não demonstra uma falta de esperança na vida futura. Wright (op. cit, p. 149 ) afirma: "Quando Jacó declara  que perder um filho 'faria descer suas cãs com tristeza ao Sheol', ele não estava dizendo que tal tragédia o levaria para o sheol ou a outro lugar, mas que sua passagem seria acompanhada de tristeza e não de satisfação por uma vida longa e valiosa". Para Horton (op. cit, p. 47): "Jacó, naquela ocasião, recusara a ser confortado, sem dúvida pensando que ele e José estivessem de algum modo sob o julgamento de Deus. Não há registro que Jacó tenha buscado ao Senhor novamente, a não ser depois de ter recebido a notícia que José estava vivo (Gn 45:28-46:1). Portanto, é provável que Jacó tenha considerado sheol como um lugar de punição". No que se refere a Ezequias, o texto indica  que Ezequias fizera uma oração de arrependimento devido ao seu pecado, ainda que interpretemos sheol como sepultura, Ezequias não está dizendo que todos os homens irão ao mesmo lugar, mas sim, que este, caso perecesse, não poderia louvar a Deus na terra dos vivos.

O salmo 115  resume bem do sentimento israelita acerca do futuro.  Às vezes até mesmo citado como um salmo que fala de uma vida sem esperança devido a afirmação do versículo 17,  porém quando lemos atentamente, vemos grande esperança:

"Os mortos  não louvam ao senhor, nem aos que descem ao silêncio, mas nós bendiremos ao SENHOR, desde agora e para sempre. Louvai ao Senhor!".

Aqui, claramente se manifesta a confiança de uma vida futura na presença de Deus. Algo que Oseias, Isaías e Daniel, deixarão clara e limpidamente expressa[10].

Uma palavra definitiva acerca do "sheol-hades" vem do próprio Senhor Jesus. Em Lucas 16,  fala acerca do Rico e Lázaro, Jesus claramente mostra que o rico, no Hades-sheol), estava "em tormentos" ( vrs 23), enquanto que Lázaro, estava no seio de Abraão (ou seja, na presença de Deus). Aqui, claramente se vê o sheol como um lugar de tormento e tristeza, enquanto que para o justo, o conforto da Santa presença de Deus.

II). A Esperança Manifesta no Novo Testamento.

No que tange ao ensino neotestamentário, Tanto o Senhor Jesus quanto os apóstolos foram claros acerca do cuidado de Deus pelos seus santos após a morte. Ao ladrão da cruz, nosso Senhor expressamente afirmou que este estaria com ele "no paraíso". O apóstolo Paulo sabia que, ao deixar este corpo, ele iria diretamente para a presença de Cristo no céu (Fp 1: 23). Porém a esperança do após a morte para nosso Senhor e para s apóstolos não se resume a uma vida além-túmulo. Mas sim na ressurreição dos mortos. Como dito anteriormente, a morte é um inimigo a ser destruído. Com sua morte, Cristo venceu a própria morte e quebrou seu império, e consequentemente, desfez a maldição da serpente (o Diabo). O escritor de Hebreus afirma:

"E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que, pela morte, aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo, e livrasse toso os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão" (Hb 2:14-15).

Cristo é primícias da ressurreição (1 Co 15:20), e assim como ele ressuscitou, assim também nós ressuscitaremos em glória eterna. A morte será o último inimigo a ser destruído (1 Co 15: 26) e já não mais existirá (Ap. 21:4). Essa é a firme e esperança do crente.


Conclusão.

A pergunta feita por Jó, então, tem uma reposta? Nosso franco e definitivo parecer é um grande SIM. Por certo Jó, quando morreu, velho e farto de dias, já estava firme e convicto disso. A vinda do Filho de Deus, o Senhor Jesus, com sua morte, nos trouxe o perdão dos pecados e a garantia da presença de Deus a todo aquele que crê N'ele (Jo 3:36), além disso, com sua ressurreição, nosso Senhor garantiu a vitória sobre o mundo, a carne e o diabo e nos fez, portanto, mais do que vencedores.  Com ele, certamente temos mais do que  a felicidade no paraíso. Sabemos que, para desfrutarmos plenamente nossa vida com Deus, ressuscitaremos em glória. Para o que nele crê, não se está reservado (como aos ímpios) uma região de trevas e sem luz, seguida, depois, do agonizante lago de fogo, mas sim as perpétuas delícias Nele. Em Cristo, a pergunta de Jó é plenamente respondida:

"Egw eimi h ` anastasij kai h ` zwh) ~O pisteuwn eij eme( kan apoqanh( zhsetai)  Kai paj o ` zwn kai pisteuwn eij eme ou mh apoqanh eij ton aiwna) Pisteueij touto?"

"Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. Quem vive e crê em mim nunca morrerá para sempre, crês tu isto?" (Jo 11:26-27 )

E também:

Não temas; Eu Sou o Alfa e o ômega e o que vive; fui morto, mas eis aqui estou vivo para todo o sempre, Amém! e tenho as chaves da morte e do inferno (Hades)" (Apocalipse1:18).

Por isso, podemos fazer coro com o apóstolo Paulo e dizer: "onde está, ó morte, o teu aguilhão, onde está, ó inferno, a tua vitória?" (1 Co 15: 55). E também dizer: " Amém, ora vem Senhor Jesus!" (Ap 22:20).


Soli Deo Gloria


Notas:

1. O livro de Stanley Horton, Nosso Destino (republicado pela CPAD com o título O Ensino Bíblico das últimas coisas) fornece dentro de um ponto de vista conservador e erudito , porém simples e abrangente, respostas as indagações modernas acerca deste assunto. Horton também trata desse assunto em sua Teologia Sistemática, uma perspectiva pentecostal.
2. HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 516.
3. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008. p. 34.
4. Geisler define a visão bíblica do homem e a questão entre a relação corpo/alma como Hilomorfismo, que forma uma unidade da pessoa humana. Tal termo provém de Tomás de Aquino (1225-1274).
5. Surpreendentemente, o próprio Ladd, no capítulo que trata  da "Escatologia Individual"(p. 258-259)  dentro da seção acerca dos evangelho sinóticos contradiz sua declaração registrada aqui. Ao que parece, o livro de Ladd sofre do problema de uma teologia bíblica que tem o método histórico-crítico de pesquisa: não se consegue chegar a uma unidade e uma sintetização entre os textos bíblicos, na ênfase de, a todo custo, ressaltar sua diversidade. O resultado por fim, é um retrato aparentemente contraditório nos textos bíblicos (obs: as edições mais recentes do livro de Ladd tentam contornar esse problema com capítulo adicionais de R. T. France e David Wenham). Ladd expressou mais claramente sua visão sintetiza acerca da antropologia bíblica no capítulo "The Greek versus the Hebrew view of Man"[A visão grega versus a visão hebraica do homem] em seu livro The Pattern of New Testament Truth  [O Padrão da Verdade Neostamentária]. Disponível em:www.presenttruthmag.com/archive/XXIX/29-2.htm
>; Último acesso em: 08/01/2013.
6. WRIGHT, N. T. A Ressurreição do Filho de Deus. São Paulo: Paulus, 2013. p.148
7. Ao fazer uma análise de Isaías 14:9-11, Wright nota uma "fluidez de pensamento entre o Sheol, como morada mítica das sombras, por um lado, e a realidade física da sepultura- pedras, vermes e larvas - por outro" (Ressurreição, p 149).
8. No entendimento de Wright, os únicos textos mais claros no Antigo Israel que tratam de um esperança futura são os Salmos 49 e 73(ele passa por alto em outros salmos e textos bíblicos que indicam essa mesma esperança, como Gn 22:2-5, Sl 17:15, o "clássico" Salmo 23 e o Salmo 115), sendo que a regra em geral é a expectativa de um caminho sem volta ao sheol, como demonstrado nos livros de Jó e Eclesiastes. Na passagem de Jó citada por ele,  a grande questão envolve a tradução exata de Jó 19:26: "E depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne, verei a Deus". A expressão em minha carne, envolvendo a palavra hebraica "min", expressão que possui uma variedade gama de possíveis traduções. Sendo que, dentro do contexto do capítulo é também possível traduzir a expressão como "fora de", o que resultaria na tradução "ainda sem a minha carne". Holladay (Léxico Hebraico Aramaico, p. 283) oferece mais de cinco outras possibilidades. Todavia, Archer (Panorama do Antigo Testamento, p.583) afirma: "é razoável afirmar que, em conexão com o verbo ver (hazâ), min, segundo seu emprego em outros trechos, quase sempre descreve a perspectiva  daquele que vê". Geisler (op. cit, p.698) é de igual opinião: "Embora a palavra min frequentemente signifique 'sem', é usada com o sentido de 'dentro' em Jó 36:25. Além disso, quando usado em conexão com o verbo 'ver' (haza), min assume o significado  de "dentro de", ou "do ponto de", que novamente, implica dentro do corpo ressurreto".  A defesa da tradução tradicional se encontra ainda mais bem defendida no comentário de Francis I. Andersen (Jó - Introdução e comentário, p. 192): "As referência à pele, ao corpo e aos olhos tornam claro que Jó espera ter esta experiência como homem, e não num estado de espírito desencarnado, ou na visão de sua mente". Anderson nota o fato que mesmo antes de Jó fazer o questionamento citado na introdução (Jó 14: 14) , há uma firme expectativa que Deus poderia resgatá-lo do Sheol (no caso aqui, da própria sepultura - cf. Jó 14:13). Andersen mostra que a relutância dos eruditos em não aceitarem esse ponto de vista se dá por pensarem que a ideia de ressurreição futura se encontra muito tempo depois do livro de Jó ter sido escrito.
9. Geisler (ibid, p.698) ainda faz menção a Jó 42:13, onde mostra que o número de filhos do patriarca não foi duplicada depois de seu sofrimento, o que indica que Jó jamais perdeu seus outros filhos, que seriam reunidos na ressurreição.
10. O leitor há de notar que não faço menção as claras profecias de Isaías, Ezequiel e Daniel acerca da ressurreição futura, isso(como falado por Andersen) se dá pelo fato de se discutir acerca da fé no Antigo Israel, sendo que, para a maioria dos teólogos históricos a esperança da ressurreição nação judaica foi feita após livros como Jó e Eclesiastes terem sido escritos. Dependo da opinião do estudioso, pode-se afirmar que só surgira realmente no período próximo ao do Exílio babilônico (afirmação essa que entra em direto choque com Hebreus 11:10,19).


REFERÊNCIAS:

ANDERSEN, Francis I. - Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1984.
ARCHER, Gleason. Panorama do Antigo Testamento. 4° ed. São Paulo: Vida Nova, 2012.
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática.4 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
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