sábado, janeiro 14, 2017

Internet: uma péssima companhia para momentos em família

É sexta-feira. O shopping está lotado. Depois de um bom tempo, finalmente, eles encontram uma mesa disponível. Marido, esposa e seus três filhos sentam-se próximos uns aos outros – pelo menos, aparentemente.

O líder do lar dá dinheiro para a esposa comprar o lanche; o caçula e a filha do meio vão juntos. O clima está perfeito para conversar com a primogênita. Por que não perguntar como anda o coração da filha? Ou por que não tratar das dificuldades na escola? Ter uma conversa descontraída e rir um pouco com a filhota também poderia ser uma boa pedida. Porém, uma tragédia acontece: o pai da família liga o tablet e começa a navegar na internet. Enquanto o pai está fixado em notícias irrelevantes, a filha fica olhando para o horizonte. Não há sequer uma palavra trocada entre os dois.  

A filha do meio retorna com um milk shake. O silêncio é quebrado por poucas conversas entre as irmãs. Para não dizermos que a interação do pai é zero, de vez em quando, ele toma um pouco do milk shake, sem tirar os olhos da tela do dispositivo eletrônico.

Os dois membros da família que faltavam retornam. O filho senta-se de frente para o pai. Entretanto, ironicamente, os dois não trocam nenhum olhar. O celular e os fones de ouvido roubam, completamente, a atenção daquele.

O passeio que deveria ser um momento de lazer familiar, infelizmente, tornou-se um momento lastimável.

                                                                             *

A cena descrita acima é verídica. Enquanto arriscava-me em comer um sushi (daqueles inteiramente crus) na companhia de minha noiva, acabei observando um pouco a família que estava perto de nós. Sinceramente, isto me deixou muito angustiado. Geralmente, os jovens e adolescentes são os mais antissociais nos passeios em família – o que também é um problema sério. Contudo, neste episódio de ontem, o pai era o pior de todos. Ele não tinha nem “moral” para repreender o filho atolado na internet…

Se não combatermos o vício no mundo digital (incluo-me nesta luta), nós e nossas famílias sofreremos (se é que já não estamos sofrendo) terríveis consequências.

Que Deus nos abençoe de modo que experimentemos as bênçãos descritas no Salmo 128:

"Bem-aventurado aquele que teme ao SENHOR e anda nos seus caminhos. Pois comerás do trabalho das tuas mãos; feliz serás, e te irá bem. A tua mulher será como a videira frutífera aos lados da tua casa; os teus filhos como plantas de oliveira à roda da tua mesa. Eis que assim será abençoado o homem que teme ao Senhor. O Senhor te abençoará desde Sião, e tu verás o bem de Jerusalém em todos os dias da tua vida. E verás os filhos de teus filhos, e a paz sobre Israel."

quinta-feira, janeiro 12, 2017

Manuscritologia do Novo Testamento (Resenha)

No ano de 2014, o mercado editorial brasileiro recebeu uma obra que trata de um assunto bem pouco explorado no Brasil: O estudo da manuscritologia, ou crítica textual bíblica; em especial no que tange ao exame do Novo testamento. Em Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o Final do evangelho de Marcos, o pastor presbiteriano Paulo Anglada explora questões difíceis e técnicas em um linguajar simples e direto, sem perder a erudição e muito menos a ortodoxia protestante de linha Reformada, com isso o leitor é desafiado a lidar com a intrincada história dos manuscritos que compõem o Novo Testamento.

           
  O livro do Reverendo Anglada evita o tecnicismo constante nessa área, o que geralmente desestimula os leitores em geral e até mesmo seminaristas. Após breve introdução, o primeiro capítulo lida com a História do Texto, lidando com as mais importantes descobertas de manuscritos dos quatro primeiros séculos, como também com o surgimento do primeiro texto impresso, feito pelo humanista Erasmo de Roterdam e publicado em 1516 e a sua “rival”, a Poliglota Complutesiana, além das edições subsequentes feitas por vários homens como Robert Stephanus, Theodore Beza, os irmãos Elzevir, o que veio a ser chamado de Textus Receptus. Após esse período, surgiram outros textos, que cada vez mais se afastaram do Textus Receptus até a publicação do Texto de Westcott e Hort, que se baseou em dois manuscritos provenientes de uma região: O Egito. Tais manuscritos em muito se diferiam dos manuscritos usados por Erasmo, que em geral representavam a maioria dos manuscritos gregos do Novo testamento, que formavam o tipo de Texto Bizantino/Siríaco. Com isso, surgiram as mais variadas traduções, todas adotando o texto de Westcott e Hort como base (que depois foi aperfeiçoado através dos trabalhos de críticos textuais como Kurt Aland e Bruce Metzger). Por fim, o primeiro capítulo fecha com as reações modernas do defensores do Textus Receptus: existem duas alas, a erudita e a popular. Da primeira, há nomes como Edward Hills e Theodore P. Letis, e da segunda, mais fundamentalista e radical, nomes como D. A. Waite e Peter Ruchnan. Outra reação aos textos críticos de Westcott/Hort (atualmente representado pelas modificações de Ebheard Nestle e Kurt Aland) foi o surgimento da teoria do Texto Majoritário moderno, com proponentes como Zane Hodges, Wilbur Pickering e Jakob Van Bruggen.
            
Nos demais capítulos há uma breve análise de cada corrente textual existente. Cada capítulo lida com as teorias textuais a partir de análise das obras de seus representantes mais respeitados: os defensores do Textus Receptus (capítulo 2), os defensores do texto Eclético/crítico (capítulo 3) e os defensores do Texto Majoritário, do qual o próprio Anglada é um defensor (capítulo 4). Por fim, há um estudo detalhado sobre o final do evangelho de Marcos, rejeitado pelos críticos Textuais modernos como inautêntico (capítulo 5). 
            
A tese de Anglada é clara: “Deus não confiou o texto das Escrituras aos caprichos da história. Ele determina cada acontecimento da história com vistas a consecução de seus propósitos eternos – inclusive, e especialmente, aqueles que dizem respeito à preservação da sua Palavra” (p. 14). Anglada encontra dificuldade com as teorias de Westcott e Hort, mostrando que o pressuposto desses eruditos vai contra as evidências de transmissão textual. Sendo que um dos grandes problemas é que tais críticos veem a Bíblia como um livro comum, e sua transmissão como normal, assim como elaboraram teorias naturalistas acerca do texto a partir de dois manuscritos extremamente conflitantes entre si (só nos Evangelhos são mais de 3.000 vezes). A crítica de Anglada, detalha no capítulo 3, é forte e certeira contra a corrente textual que domina os Textos gregos do Novo Testamento e as traduções modernas. O capítulo 4 se distingue de certa forma dos demais, pois ao analisar a Corrente Textual que defende o chamado Texto Majoritário, nota-se a identificação textual do autor, que nos dá uma excelente definição acerca da visão textual Majoritária:

“A maneira, entretanto, pela qual Deus preserva a Palavra inspirada, não é explicitada na Bíblia, devendo ser concluída por investigação adequada das evidências históricas. Na concepção dos defensores do texto majoritário, as evidências históricas indicam que a preservação do texto do Novo testamento não ocorreu através da preservação sobrenatural dos autógrafos, nem pela inspiração dos copistas, guardando todos eles de erro, nem de uma determinada edição do Textus Receptus, nem em um número não representativo de manuscritos contraditórios provindos de uma única região. Para eles, o texto original foi preservado na grande massa de manuscritos de todos os tipos, procedentes de lugares variados, ao longo dos séculos” (pp.125-126).

            Após tratar sobre os métodos de investigação textual dos proponentes do texto majoritário, o autor também está ciente de alguns problemas relacionados a essa teoria. Por fim, o capítulo 5 trata acerca da problemática envolvendo o chamado “final longo de Marcos”, onde o autor defende com vigor o final tradicional de Marcos, a partir da tradição majoritária. Na conclusão, faz-se uma breve recapitulação do que foi tratado, chegando às considerações finais. Há ainda dois apêndices, o primeiro mostrando a história do Texto Impresso e o segundo apresentando sugestões para pesquisa direcionada a estudantes de bacharelado e mestrado. Dentre as sugestões destacam-se as pesquisas sobre a manuscritologia na Idade média e dentre os puritanos, finalizando, assim, a obra.

- Análise:
           
            A obra de Anglada apresenta uma qualidade impressionante no que diz respeito a uma visão que honra as escrituras, mas não deixa de estar sujeita a críticas em certas afirmações. Vejamos pontos positivos e negativos a seguir.

I. Pontos positivos:

a) Primeira obra publicada no Brasil a defender o texto Bizantino: Em um mercado saturado com obras que defendem a baixa-crítica do novo testamento segundo os padrões de Westcott e Hort, a obra de Anglada é um contra-ponto adequado e equilibrado, dentro de uma perspectiva reformada-confessional, algo raro no Brasil. A maioria das defesas em prol do texto-tipo bizantino são de fundamentalistas, que defendem de maneira implacável o Textus Receptus.

b) Apresentação clara das três perspectivas quanto ao texto do Novo Testamento: o pastor Anglada mostra, de maneira clara e sistemática, as três visões textuais acerca do texto do Novo Testamento: os defensores do Textus Receptus, do texto Eclético e do Texto Majoritário (sendo este último uma atualização da primeira). Em geral, a obras que defendem o texto crítico colocam os proponentes do Textus Receptus e Majoritário no mesmo grupo. Ainda que as semelhanças sejam enormes entre os dois grupos, e haja em certas ocasiões uma cooperação mútua, há diferenças evidentes nas metodologias de cada um. Basta consultar as obras de Frederick Nolan e Edward Hills (que defendem o Textus Receptus) e a visão de Zane Hodges e Maurice Robinson (que defendem o Texto Majoritário em sua configuração moderna) para ver a diferença entre as escolas.

c) Correta diferenciação entre os defensores do Textus Receptus: o autor consegue notar a diferença entre os defensores eruditos moderados do Texto Recebido, como Edward Hills e os de linha radical como D. A. Waite, Peter Rucknahm e Gail Riplinger.  Algo também não diferenciado pelo opositores do Texto tradicional.

d) Excelente crítica quanto à escola histórico-crítica e a produção do texto crítico do Novo Testamento:  O Brasil carecia de uma obra que combinasse tanto questões técnicas quanto uma defesa firme do Texto Grego Tradicional, partida de um erudito que valoriza a piedade cristã e o método histórico-gramatical de interpretação das Escrituras. Com exceção da obra de Wilbur Pickering, o mercado brasileiro está repleto de obras que defendem o método histórico-crítico, dentre os quais se destacam Wilson Paroschi, Kurt Aland, Daniel Wallace e Bruce Metzger.  O livro de Anglada faz uma crítica respeitosa, porém firme, a um criticismo textual que não honra as Escrituras como Palavra de Deus. Só esse motivo já é suficiente para considerar tal obra como importante.

II. Pontos negativos:

a) A Falta de uma análise mais justa acerca da obra de Edward Hills: Anglada faz crer que os defensores do Textus Receptus não analisam as evidências. Mesmo fazendo uma diferença entre os defensores moderados e radicais do Textus Receptus, em sua crítica à corrente textual, ele parece jogar todos no mesmo pacote, mesmo Edward Hills. Ainda que reconhecendo a excelente erudição de Hills (graduado em latim e Phi Beta Kappa da universidade de Yale, bacharel em Teologia pelo Westminster Theological Seminary, mestre em teologia pelo Columbia Theological Seminary e doutor em Crítica textual pela Universidade de Harvard), as críticas que faz a Hills são pungentes:

 “A defesa do Textus Receptus fundamenta-se e é inteiramente explicada pela doutrina da preservação providencial. Entretanto, visto que as escrituras não declaram explicitamente a preservação de um determinado tipo de texto (no caso, do Textus Receptus), o uso da doutrina é muitas vezes abusivo e injustificado. A aceitação das explicações de Hills e de outros proponentes do TR é matéria de pura fé na interpretação que eles oferecem” (Anglada, p.94).

Há muito que se pode dizer em defesa de Hills (e outros defensores do Textus Receptus), que abraça o Textus Receptus como um texto legítimo. Partamos para alguns deles:

a.1) A filosofia cristã de Hills é Reformada e Pressuposicional.

            Como estudante do Westminster Seminary, Hills foi treinado pelo célebre Cornelius Van Till, que defendia uma forma distinta de apologética: A apologética pressuposicional, que ao contrário da clássica ou evidencialista, possui o ponto de partida para uma cosmovisão saudável a pressuposição do Deus Trino como revelado na Escritura, atentando nas proposições nela contidas. No dizer de Hills: “nas escrituras, Deus revela: a si mesmo, não meras evidências da sua existência, não meras doutrinas acerca de si mesmo, não uma mera história de seu lidar com os homens, mas A SI MESMO” (The King James Version Defended, p.4) e ainda: “As escrituras, portanto, são o fundamento da fé. Nelas a revelação de Deus acerca de si mesmo não é obscurecida pelo erro humano” (Believing Bible Study, p.4). Haja vista que as Escrituras declaram claramente que seriam preservadas no passar das eras, de maneira perfeita pelo Senhor (Mt 24.35), o que nos leva a atentar para a preservação divina através da história do texto bíblico, algo que está em sintonia com o que se encontra nas confissões de fé de Westminster, Londres e Savoy. Por isso, o que Hills faz é integrar pressupostos bíblicos (a lógica da fé) com a história do texto, todavia, o faz sem torcer as evidências a seu favor. Pelo contrário, como crítico textual habilitado, Hills mostra que a questão não é entre os que defendem o Textus Receptus de maneira cega e os defensores do Texto Eclético (e até mesmo do Majoritário), com base do estudo científico, mas sim na interpretação que se dá acerca das evidências.
Tratando acerca dos estudos feitos dentro da perspectiva naturalista, Hills comenta: "Há dois métodos de Criticismo Textual do Novo testamento, o método cristão consistente e o método naturalista. Estes dois métodos lidam com o mesmo material, os mesmos manuscritos gregos, e as mesmas traduções e citações bíblicas, mas eles interpretam esse material de forma diferente” (King James Version Defended, p.3) e acrescenta: “Nos estudos bíblicos, na filosofia, na ciência, e em qualquer outro campo do saber devemos começar com Cristo e aí então trabalhar nossos princípios básicos de acordo com a lógica da fé. Este procedimento nos mostrará como utilizar o aprendizado vindo de eruditos não-cristãos de uma forma que nos aproveitemos de seus estudos” (King James Version Defended, p. 114).  Rebatendo a afirmação que isso leva a um agnosticismo intelectual, Hills afirma: “Isso significa que nos tornamos obscurantistas? e perdemos todo o nosso interesse nos estudos textuais do Novo testamento? Nós franzimos o cenho no estudo dos manuscritos do novo testamento e desencorajamo-lo por medo de provar que estamos errados? de modo nenhum! Pelo contrário, congratulamo-nos com a investigação honesta dos documentos do novo testamento, tanto mais que os resultados dos últimos 300 anos de tais estudos, bastante interpretados, apoiaram as reivindicações do Texto Tradicional e do Textus Receptus” (Believing Bible Study, p.214-215).                                                           

a.2) Hills não defende uma visão perfeccionista do Textus Receptus.

Ainda que possa haver uma tendência em Hills de defender o Textus Receptus de forma indiscriminada, ele claramente mostra que não concorda com as emendas conjecturais feitas por Calvino e em especial por Theodore Beza na publicação de seu texto grego. Para ele, o Textus Receptus não se reduz a uma única edição, mas a um conjunto de várias edições que apresentam essencial e substancialmente o mesmo texto, ainda que haja pequenas variações em um lugar e outro. Acerca da presença de algumas variantes textuais, Hills comenta:

“... Deus não revela todas as verdades com igual clareza. Na crítica textual bíblica, como em qualquer outro departamento do conhecimento, ainda há alguns detalhes em relação aos quais devemos nos contentar em permanecer incertos. Mas a providência especial de Deus tem mantido estas incertezas para baixo a um mínimo. Portanto, se acreditarmos na preservação providencial especial das Escrituras e fizermos deste o princípio principal de nossa crítica textual bíblica, obtemos certa certeza, toda a certeza que qualquer homem pode obter, toda a certeza de que precisamos” (King James Version Defended, p.224).
   
a.3) A visão de Hills é Reformada e a estrutura de seu pensamento segue a linha de Cornelius Van Till.

Tanto no Livro The King James Version Defended, quanto em sua obra gêmea Believing Bible Study, Hills deixa claro que, para se abordar o material acerca do criticismo textual, não se apode adotar uma perspectiva naturalista. Aqui vemos a perspectiva da apologética pressuposicional na defesa dos manuscritos do Novo Testamento.

b) Anglada apresenta uma opinião comum acerca de Erasmo e da publicação do texto grego, em especial sobre Apocalipse: O pastor Anglada acaba repetindo alguns mitos acerca do último capítulo do livro de apocalipse no Texto grego editado por Erasmo, onde supostamente o erudito Holandês retraduziu o texto da vulgata para o grego. O grande problema é que não há nenhuma evidência concreta que esse tenha sido o caso, e tal história vem sendo amplamente contestada por alguns estudiosos modernos, juntamente com os chamados “mitos erasmianos”, dentre os quais destacam-se a história da “pressa” em Erasmo de publicar seu texto grego, a história do Comma Johanneum (1 Jo 5.7) no Texto Recebido, os poucos manuscritos utilizados por Erasmo, etc. Tais mitos são analisados detalhadamente por Jeff Ridlle, pastor reformado e estudioso de questões textuais, podendo serem estas lidas com detalhes aqui.

c) A visão do Texto Majoritário não é necessariamente Reformada.

Ainda que colocada como uma posição totalmente reformada e adotada por alguns professores reformados como Jakob van Brueggen, a perspectiva do texto Majoritátio surgiu dentro de um contexto dispensacionalista de alguns professores do Dallas Theological Seminary, como Zane Hodges, William Farstard e Wilbur Pickering. Ainda que tais homens sejam conhecidos por sua piedade e teologia conservadora, a visão que mais se aproxima da perspectiva reformada, e que está de acordo com a confissão de fé de Westminster, é a adotada por Hills.

d) Pouco realmente se dá valor às pressuposições na hora da metodologia do estudo dos manuscritos, fazendo com que a estrutura se assemelhe à da crítica, no que tange à linha de estudos.

Ainda que haja méritos notáveis na posição do Texto Majoritário (que muito se assemelha a posição do Textus Receptus), o método em si acaba por também querer passar uma visão de neutralidade e objetividade científica, e também acaba por tentar, ainda que em menor escala, fazer uma reconstituição do texto original do Novo Testamento em grego. Tal perspectiva passa uma ideia de erudita e agrada a ouvidos acadêmicos, porém não necessariamente está totalmente de acordo com os princípios da Palavra de Deus. O conselho de Hills é precioso aqui: “O criticismo textual do Novo Testamento do homem que crê na inspiração e preservação providencial das Escrituras como verdadeiras difere daquele que não crê assim... o homem que abraça essas doutrinas como verdadeiras é incoerente se ele não as der um lugar proeminente em seu tratamento do texto do Novo testamento, um lugar tão proeminente que faz com que criticismo textual do Novo testamento seja diferente do criticismo de livros antigos, pois se essas doutrinas são verdadeiras, elas demandam tal lugar” (King James Version Defended, p. 3).

- Conclusão:


A despeito de certas incoerências na defesa de Anglada do Texto Majoritário, e a falta de observação nos detalhes concernentes à visão Reformada do Textus Receptus, a obra em si tem muitas qualidades e é uma boa fonte de consulta para seminaristas, professores de escola dominical e pastores - além do público geral. É um alívio editorial em um mercado saturado de obras que promovem o texto crítico.

segunda-feira, janeiro 09, 2017

Vale a Pena Ler: As Crônicas de Olam (Vol. 1 e 2)


É fato um tanto quanto conhecido que algumas das maiores obras da literatura ocidental foram escritas por cristãos ou por pessoas que tiveram formação educacional dentro de uma estrutura de pensamento cristã. Dentre estes clássicos se destacam aqueles de língua inglesa bem conhecidos, como Paraíso Perdido, de John Milton, O Peregrino, de John Bunyan, A Letra Escarlate, de Hawthorne e Moby Dick, de Mellville. Mais recentemente a cosmovisão cristã se fez presente na área da fantasia, a partir de livros como As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, e O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien. 

Na língua portuguesa, a história é outra. Ainda que hajam obras magnas com alguns elementos cristãos, uma obra de fantasia com uma perspectiva cristã até tempo atrás era algo bastante improvável. Isso foi até 2011, quando o pastor Leandro Lima adotou o nome autoral de L. L. Wurlitzer e publicou o livro Olam - Crônicas de Luz e Sombras. O livro era uma obra de ficção, de gênero de fantasia, baseando-se na cultura hebraica e escrito partindo de uma estrutura de pensamento cristã. Dois anos depois, Wurlitzer publicou Olam - Crônicas do Mundo e Submundo. Ambas as obras foram publicadas pela Editora Fiel com o selo Tolk Publicações, que se dedica a publicar obras da mesma linha de fantasia. O título sofreu alterações, sendo que passou a ser As Crônicas de Olam: Luz e Sombras e As Crônicas de Olam: Mundo e Submundo. A partir de agora, passemos a analisar ambas as obras, até então publicadas (um terceiro volume é ansiosamente aguardado). Elementos importantes da trama serão notificados com a expressão em inglês Spoiler Alert.

A Trama:

Wurlitzer procura apresentar uma fantasia narrativa, onde um jovem de passado desconhecido e misterioso, Ben, procurando por seu misterioso mestre, Enosh, acaba por se envolver em uma jornada épica para reativar o chamado "Olho de Olam", uma pedra preciosa (que faz parte de um conjunto de pedras chamadas Shoham) que é capaz de repelir seres das trevas, dentre os quais se destacam os Shedins, Nephilins e Oboths. Para isso, Ben, juntamente com seus amigos Leannah, Adin, a bela Tzizah e o Guiborim Kenan, passarão por uma jornada épica que culminará em batalhas explosivas e na própria descoberta pessoal do jovem, também chamado de "Guardião de Livros".

A Obra:

A cultura hebraica permeia todo o livro. Nomes como El, Giborim, Kenan, Ben, Thamam, Saraph e Mashchit são todos de origem semítica e estão presentes na Bíblia, porém não se deve esperar um elemento diretamente alegórico, como no Peregrino de Bunyan ou simbólico, como em Nárnia. Olam segue uma linha bem Tolkeana (a influência do escritor inglês é bastante notável em alguns elementos dos livros), apresenta um mundo imaginário e uma boa história, escrita dentro um padrão ético cristão. As criaturas descritas no livro se assemelham como são descritas no folclore Hebraico. Leviathan e Behemot não são, por exemplo, apresentados como dinossauros, mas, respectivamente, como um dragão mitológico e como uma versão ancestral do Godzilla. Por isso, não se pode tentar encontrar um equivalente exato em cada personagem ou episódio, mas sim atentar para as verdades teológico-espirituais apresentadas no decorrer da trama.

Análise:

Há muitos pontos positivos a se ressaltar nos dois volumes: apesar de ser uma obra de fantasia, percebe-se que foi muito bem escrita no que tange à reflexão teológica. O autor apresenta temas teológicos de forma clara, sem ambiguidade. Ainda que todos os personagens apresentem defeitos e algum nível de corrupção moral (e cometam pecados), nada fica turvo. Não há aqui uma moralidade cinzenta, como vista na obra de George Martin. 

Ambos os volumes apresentam uma qualidade altíssima de boa escrita. O autor, que é doutor em
literatura e teólogo evangélico, apresenta uma qualidade descritiva como poucos escritores desse gênero. Num instante, o leitor consegue visualizar mentalmente cada detalhe descrito por Wurlitzer, tem-se a impressão de estar assistindo a um épico direto de uma tela cinema (não é à toa que uma adaptação cinematográfica já foi ventilada por alguns leitores). O domínio narrativo também se destaca. A trama desenvolve-se de maneira leve e natural, o leitor não sente a necessidade de reler alguma página, pois entendeu bem o parágrafo e ansiosamente procura o seguinte.

Spoiler Alert

(Leia o restante da análise somente após a conclusão da leitura dos dois volumes de As Crônicas de Olam.)


Wurlitzer também conduz uma boa trama de mistério. Afinal, quem é Ben? De onde ele veio? E os outros personagens, quem são? À medida que a narrativa avança, não somente nos perguntamos quem é Ben, mas quem são Thamam, Kenan e Gever? Ainda que muitas respostas sejam esclarecidas no segundo volume, nem tudo está completo, inclusive o passado de Ben. 

Um ponto negativo se encontra às vezes na duração de alguns momentos da trama (a ida de Ben ao Abadom para buscar Thamam, ou melhor, Tutham) no segundo volume, ainda que escrita para o leitor propositalmente se sentir claustrofóbico, cansa em determinados momentos. Outro ponto negativo deve-se a um fator externo que acaba prejudicando um pouco a qualidade interna. Como os dois volumes foram escritos anteriormente por Wurlitzer de maneira independente, o autor precisou reescrever algumas frases e detalhes incidentais da narrativa para o relançamento pela Tolk Publicações, o que não somente atrasou substancialmente a publicação do terceiro volume, como também em alguns poucos momentos, acaba por empobrecer a narrativa. Façamos uma breve comparação aqui do capítulo final do volume 2 (mundo e submundo):

"Ben levantou os olhos e viu quando eu abri a capa que me envolvia. Ele subiu o olhar e enxergou um colar no meu pescoço. E nele, dependurada uma pedra. Dela emanava um forte brilho branco"  (Tolk Publicações).

"Ben levantou os olhos e viu quando eu abri a capa que me envolvia. Ele subiu o olhar e enxergou um colar no meu pescoço. E nele, dependurada uma pedra branca. Dela emanava um brilho capaz de afugentar as trevas" (Agathos Publicações).

Ainda que em ambas as edições a narrativa permanece substancialmente a mesma, a versão da Tolk apresenta um leve anticlímax quando comparada com a versão original do autor - uma curiosidade interessante é que ambos os volumes apresentam semelhanças quanto à produção gráfica. O volume 1 da Tolk/Agathos apresenta um certo relevo na capa, e o papel é do tipo mais popular. Já o volume 2 da Tolk/Agathos não apresenta relevo algum, mas o papel é mais fino e de maior qualidade.

Conclusão:

A obra de Wurlitzer contém: narrativa envolvente, escrita detalhista e imaginativa. Adiciona-se um volume precioso na estante de grandes escritores cristãos. Cada página vale a pena. A obra caminha a passos largos para ficar nas fileiras dos clássicos da fantasia e Fantasia Cristã, faltando agora apenas ser posta no lugar certo com os atos derradeiros do Guardião de Livros.


Soli Deo Gloria

sexta-feira, janeiro 06, 2017

Três Maneiras de Não Lidar com Disciplinas Espirituais

Li o seguinte texto a partir de um tweet de David Platt. Creio que ele é bastante pertinente para nossas resoluções de ano novo. O original, escrito por David Burnette, pode ser acessado aqui. Boa leitura. Que Deus nos abençoe e ajude.
                                                                                
                                                         ***
Embora Cristãos devam praticar as disciplinas espirituais sempre, muitos escolhem reanimar seus esforços no início de um novo ano. Um plano de leitura bíblica, um guia de oração, uma estratégia para limitar a rede social, ou um esforço intencional para compartilhar o evangelho mais - tudo isso são coisas boas. Mesmo que você não goste de fazer resoluções de ano novo, esperançosamente você está planejando continuar a prática de disciplinas espirituais no próximo ano. Qualquer que seja o caso, este [texto] ajuda a buscá-las na maneira correta. 

Quero oferecer três cuidados em relação a três modos de abordar disciplinas espirituais. Há muito mais a ser dito sobre este tópico, mas espero que esses cuidados sirvam como encorajamentos para buscar a semelhança a Cristo de maneiras que são bíblicas e sábias.

1. Não pratique disciplinas espirituais para estar quite com Deus

Nenhuma quantidade de oração, leitura bíblica, testemunho ou jejum - ou qualquer outra disciplina - tem o poder de mudar sua posição diante de Deus. Aqueles que estão em Cristo são declarados justos e não podem ser separados do amor de Deus (Romanos 8.31-39). Se esquecermos da graça de Deus em nos preservar, então o resultado será exaustão, desencorajamento, ou alguma forma de justiça por obras. Lutar para crescer em disciplinas espirituais é importante, com certeza, mas isso não pode ser o tipo de luta que provém de medo ou ansiedade. Disciplinas espirituais devem fluir de nosso amor por Aquele que deu seu próprio Filho para nos resgatar enquanto ainda éramos pecadores (Romanos 5.8). Isto colocará vento em suas velas espirituais para relembrar que a misericórdia salvadora de Deus tem sido abundante sobre você, um pecador merecedor de seu julgamento, e que a habilidade de buscar disciplinas espirituais em si mesma é um dom de Deus.

2. Não evite disciplinas espirituais por medo de legalismo

Enquanto disciplinas espirituais podem se tornar em uma forma de mero moralismo, elas não têm de sê-lo. Não há nada inerentemente errado em esforçar-se para crescer em piedade. Palavras como treino e disciplina não são não cristãs. Na verdade, a Escritura nos fala "treine a si mesmo para a piedade" (1 Timóteo 4.7), e Paulo falou de disciplinar seu corpo para guardá-lo sob controle (1 Coríntios 9.27). Devemos ser intencionais se queremos obedecer à exortação de Paulo à Timóteo: "foge também das paixões da mocidade; e segue a justiça, a fé, o amor, e a paz" (2 Timóteo 2.22). Este tipo de esforço é alimentado pela graça de Deus, com certeza, mas crescimento em semelhança a Cristo não acontece pelo sentar-se no sofá, esperando que um surto de alegria tome você. Isto não é como Deus planejou. Somos ordenados a "correr com paciência" à medida que olhamos para Jesus (Hebreus 12.1), e isto toma certo exercício espiritual.

3. Não trate disciplinas espirituais como uma busca de tudo ou nada

Alguns cristãos puxam o plugue [ligado] em uma disciplina espiritual simplesmente porque eles não estão alcançando seus objetivos. Eles começam um plano de leitura bíblica com entusiasmo, mas então o trabalho se torna frenético ou os prazos começam a se amontoar na escola: eles estagnam. Após falhar em alguns dias, eles tornam-se frustrados e param toda a leitura. Mas pense sobre isto: não seria melhor ler o máximo da Palavra de Deus em um ano ao invés de desistir no final de fevereiro? Lembre-se, o objetivo final não é completar um plano de leitura bíblica ou orar por quinze minutos em um dia; esses são meios para um fim. O objetivo final é crescer em seu amor por Deus. Espere contratempos temporários e recomeços ocasionais, e peça pela graça de Deus para avançar e crescer. Maturidade espiritual não é construída em um dia, ou mesmo em um ano.