segunda-feira, julho 06, 2009

A Cruz e o Cristo: considerações sobre a expiação


No nascimento do Filho de Deus, houve luz à meia-noite; na morte do Filho de Deus, houve trevas ao meio dia". Douglas Webster


Por que se acrescenta "desceu ao inferno"?
Resposta: para que em minhas mais duras tribulações eu esteja certo de que Cristo, o meu Senhor, redimiu-me das angústias e dos tormentos do inferno por sua indizível angústia, dores e terrores que sofreu em sua alma, tanto em sua cruz como antes.
Catecismo de Heidelberg, pergunta 11


Não há palavras suficientes para descrever o sacrifício de Cristo ao morrer por nós na cruz do Calvário. Não há dúvidas que a propiciação de Cristo no gólgota suscita controvérsias (vide por exemplo, a teorias da expiação ao longo dos séculos da história da igreja), além de um profundo mistério, pois ali vemos o Deus-homem pregado em um madeiro, tendo sido dado pelo Pai, por amor ao mundo (Jo 3:16).

Obviamente que, em assunto tão profundo e delicado, muitos erros quase foram introduzidos dentro do corpo de Cristo durante os séculos, alguns foram propagados de forma até mesmo inconsciente. A teoria do resgate pago a Satanás, proposta pelo pai da Igreja Orígenes é um exemplo disto.

Porém umas das mais perniciosas heresias modernas concernentes a este assunto se trata da doutrina da morte espiritual de Cristo e de sua vitória no inferno (hades), propagada pelos gurus da confissão positiva, tendo diso estabelecida por Keneth Hagin. Tal doutrina, que é mais baseada no credo apostólico[1] do que nas Escrituras, afirma que na cruz, Jesus provou a morte espiritual; ou seja, sua natureza humana se tornou pecadora. Jesus foi feito pecado, literalmente![2], tal doutrina é condenada veementemente pelos apologistas Paulo Romeiro e Ciro Sanches Zibordi, nos livros Supercrentes e Mais Erros que os Pregadores Devem Evitar. No livro Supercrentes, Romeiro afirma:

Se a morte física de Jesus não pudesse fazer a expiação mas somente a sua morte espiritual, a encarnação do Verbo perderia o seu propósito. Não poderia Jesus morrer espiritualmente no mundo espiritual? Afirmar que a morte física de Jesus não removeria os nossos pecados é contradizer as Escrituras. Observe Hebreus 10:19, 20: "Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne" e Efésios 2:13: "Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo". Podemos citar ainda 1 Pedro 4:1; 1 João 1:7; Apocalipse 1:5.


Ciro Zibordi ainda é mais enfático:


Quarto motivo. O papai H. declarou: "Jesus se tornou como nós éramos: separado de Deus. Porque provou a morte espiritual por todos os homens. Seu espírito, seu homem interior, foi para o inferno em nosso lugar... A morte física não removeria os nossos pecados. Provou a morte por todo homem — a morte espiritual" (O Nome de Jesus, Graça Editorial, p.25).

De onde alguém pode ter tirado tamanha inverdade! Teria Jesus se separado de Deus em razão de possuir uma vida pecaminosa? Ora, morte espiritual implica afastar-se do Senhor em decorrência do pecado (Is 59.2; Rm 3.23), e Jesus nunca pecou. Ele foi feito pecado por nós (2 Co 5.21), e não pecador, e levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro (1 Pe 2.24), recebendo em sua carne a punição que a nós convinha (Is 53.4,5). Isso jamais pode ser equiparado à morte espiritual, haja vista o Senhor nunca ter pecado (Hb 4.15).

Jesus não se tornou como nós éramos, pois isso implicaria reconhecer que Ele se fez pecador, e não pecado. Quando estudamos, sem preconceito, com calma e em oração, os textos de 2 Coríntios 5 e Filipenses 2.6-8, desaparecem as dúvidas quanto ao fato de o Senhor ter-se feito pecado, levando sobre si todos os nossos pecados, e não pecador, morrendo espiritualmente. Mas essa afirmação falaciosa de K.H. não foi por acaso; ele tinha em mente outras heresias ainda maiores.


Os argumentos de Hagin não possuem base bíblica de sustentação, além de aniquilarem o sacrifício de Cristo na cruz do calvário. Todavia, creio devemos atentar um pouco mais para definirmos da forma mais bíblica a questão da expiação e do sofrimento de Nosso Senhor.

Quando os célebres apologistas (que respeito e admiro muito), companheiros de batalhas pela pregação genuína do Evangelho, refutam a doutrina de Hagin, afirmam que o sacrifício físico de Cristo foi suficiente para pagar os nossos pecados é passível de algumas considerações, não querendo com isso, afirmar que tais cometem heresias doutrinárias, creio que seja necessário adentramos mais na doutrina da expiação para obtermos maior compreensão bíblica.

Romeiro afirma que "se a morte física de Jesus não pudesse fazer a expiação mas somente a sua morte espiritual, a encarnação do Verbo perderia o seu propósito". Concordo com tal afirmação, mas a questão é que a encarnação não foi somente Deus em um corpo. Tenho plena certeza que Romeiro não defende o apolinarismo, assim também como não quis expressar isso com tal afirmação, mas creio eu ser uma necessidade esclarecer que Deus se fez homem e homem completo, dotado de corpo, alma e espírito e o sacrifício de Cristo envolve todo o homem Jesus. Se ele não fosse homem completo, somente nossos corpo seriam redimidos, e o sacrifício de cristo teria sido insuficiente.

Jesus, não somente passou por um sofrimento físico na cruz, mas também espiritual. Ele levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, mas também bebeu todo o cálice que Seu Pai lhe deu (Lc 22: 42). Jesus ali não se tornou um pecador (essência pecaminosa), como afirma Zibordi. Todavia, ele foi contado com os transgressores. Não foi apenas o chicote, a angústia psicológica e a tensão do momento que constituem-se o sacríficio de Cristo, mas sim que Ele recebeu o ira de Deus destinada aos pecadores. Ou seja, Ele experimentou o inferno: a separação de Deus, ou como alguns expressam, a presença favorável de Deus foi substiutuída pela condenação ativa de Deus. Deus despejou sua ira em Cristo. John Stott afirmou com clareza tal realidade:

"O pavoroso conceito de Jesus "levar", na realidade "tornar-se" nosso pecado e maldição, como poderia ser isso e o que podia significar, deixaremos para os próximos capítulos. por enquanto, parece que a escuridão do céu foi um símbolo externo das trevas espirituais que o envolveram. pois que são as trevas no simbolismo bíblico senão a separação de Deus que é "luz, e nele não há treva nenhuma" (1 João 1:5)? "trevas exteriores" foi uma das expressões que Jesus usou para descrever o inferno, visto que é uma exclusão total de da luz da presença de Deus. Nessas trevas exteriores o Filho de Deus se atirou por nós. Nossos pecados apagaram o brilho do rosto do seu Pai. Podemos até ousar dizer que os nossos pecados enviou Cristo ao inferno - não ao "inferno" (hades, a habitação dos mortos) a que se refere o Credo ao dizer que ele "desceu ao inferno" depois de sua morte, maos ao "inferno" (gehenna, o lugar de castigo) a que nossos pecados o condenaram antes que seu corpo morresse".

Calvino, citado por Stott, também possui comentário semelhante: "Se Cristo tivesse apenas morrido uma morte física, teria sido ineficaz... A menos que sua alma partilhasse do castigo, ele teria sido um redentor de corpos somente... ele pagou um preço muito maior e muito mais excelente ao sofrer em sua alma os terríveis tormentos de um homem condenado e abandonado". Fica agora claro porque Jesus recitou o Salmo 22 (messiânico, por sinal) na cruz do calvário. a frase "Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?" mostrou claramente ser na verdade um grito de um abandono real por parte do Pai ao Filho.

Quando atentamos para estas profundas verdades, começamos a ver de forma mais nítida as suas implicações. As preciosas lições que podemos tirar daqui são importantíssímas. Lutero afirmou que nenhum homem teve mais medo da morte do que este (Jesus). A razão disso creio que já foi apresentada: era necessário Ele morrer por nossos pecados bebendo o cálice da ira de Deus. Ele foi abandonado e rejeitado, ele foi como um de quem os homens escondiam o rosto (Is 53:3) , ficou como um verme, o opróbrio dos homens e desprezado do povo (Sl 22: 6), ele sofreu o abandono de seu Pai, que havia livrado os seus antepassados israelitas, mas não atentou para Ele ( Sl 22: 1-3). Não há amor como esse. O Filho de Deus foi abandonado, desamparado e Deus não o ouvia. ele foi tudo isso, para que nós não sejamos. Todo aquele que crê em Cristo nunca será abandonado ou receberá a santa ira de Deus. Com este sacríficio, em Cristo há a redenção.

Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. (Rm 3: 25-26)

A única coisa que podemos fazer é dobrar nossos joelhos com um coração contrito, pedindo perdão por nossos pecados e confiando em Cristo Jesus, que juntamente com o Pai, nos amou e voluntariamente pagou o preço por nós. Nada temos a oferecer,a não ser responder com arrependimento e fé aquilo que Ele fez por nós. Muito obrigado Pai! Glória a ti Senhor e Salvador Nosso!

Soli Deo Gloria


Notas:

[1] O Credo apostólico fora credo que surgiu nos primeiros anos da igreja, sobre este credo e a expressão "desceu aos infernos", Wayne Grudem tece importantes considerações em sua Teologia Sistemática: "O credo apostólico não foi escrito nem aprovado por algum concílio eclesiástico num tempo específico. Antes, ele tomou forma gradual desde cerca de 200 d.C até 750 d.C"

[2] O argumento de Hagin, que tem como base o trecho de 2 Coríntios 5:21, cai de várias formas. o próprio argumento de Jesus ter assumido uma natureza satânica invalidaria o sacrifício, já tipificado no sacrifício de animais no rituais hebraicos do Antigo Testamento. Para que o sacrifício de jesus fosse válido, ele deveria ser Perfeito e sem pecado. porém com este argumento, Hagin contradiz uma questão essencial da Escritura.


Referências:

ROMEIRO, Paulo. Supercrentes. O evangelho segundo Keneth Hagin, Valnice Milhomens e os profetas da prosperidade.
São Paulo: Mundo Cristão, 1993.

STOTT, John. A Cruz de Cristo.
11° edição.São Paulo: Editora Vida, 2006.

ZIBORDI, Ciro Sanches. mais Erros que os Pregadores Devem Evitar. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.


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